22 de abr. de 2010

Caá-i, herança de Tupã


“A personalidade deste homem simples pela autenticidade, cultiva a amizade desinteressada, numa compreensão maior que o encontro, estendendo o braço para oferecer o mate, num gesto largo e franco, de quem deposita confiança” (FAGUNDES, 1984)

Conta a lenda...
que a árvore de onde se colhe a folha para produzir a bebida amarga adorada por tantos gaúchos só surgiu no mundo depois de um pedido muito especial feito a Tupã o grande deus indígena.
Em algum lugar no meio das coxilhas vivia aquerenciada uma tribo guarani cujo cacique tinha muita fama de valentia, bravura e sabedoria. Era um exemplo para seus comandados. Todos os índios queriam ser como ele, lutar como ele, caçar como ele, ter o conhecimento de tudo o que ele sabia. Outro motivo de orgulho para o cacique era a sua linda e formosa filha, Caá-Yari, muito admirada pelos jovens guerreiros.
Mesmo com tantas razões para ser um homem altivo e feliz, o chefe índio andava acabrunhado. Triste. Uma tristeza vinda lá do fundo da alma. O cacique estava se enveredando pelos caminhos da velhice e tinha medo de ficar sozinho.
Além disso, estava preocupado com sua sucessão. Não tinha filho homem e precisou escolher para sucedê-lo o mais valoroso entre os guerreiros da tribo. Justo o bravo pela qual sua filha Caá-Yari estava apaixonada. Era um grande problema a afligi-lo.
Pela lei dos guaranis, a mulher do chefe da tribo tinha de acompanhá-lo em quaisquer de suas viagens, fossem caçadas, fossem batalhas, fossem missões de paz ou a busca de novas terras.
Assim, se Caá-Yari casasse com o guerreiro escolhido para se tornar o novo cacique, muitas vezes teria que se ausentar da tribo. Com a filha longe, o velho chefe não sabia se ia agüentar continuar vivendo.
Caá-Yari conhecia as apreensões do pai. E para não magoá-lo, a bela índia amava seu adorado em segredo. A filha zelosa sabia que, só com o pensamento de vê-la longe, o cacique caía numa melancolia danada.
O desprendimento de Caá-Yari era percebido pelo chefe indígena. Sua dor e angústia eram tantas que decidiu procurar Tupã, o deus dos deuses, aquele que costuma ordenar todas as coisas do mundo. O cacique tinha consciência de que não poderia exigir a presença da filha ao seu lado para sempre e pediu a Tupã que lhe escolhesse um companheiro para as horas de solidão.Como forma de atender o pedido, o grande cacique do Céu mostrou ao cacique da Terra uma árvore grande, de folhas verdes. Dessa árvore o chefe índio retiraria, secaria e torraria as folhas, fazendo com elas uma bebida amarga e quente, mas deliciosa. Seria sua companhia para quando ninguém estivesse junto a ele. Para preencher o vazio da saudade. E assim foi criada a erva-mate.
Tupã também ensinou o cacique a partir o porongo e a fazer um canudo de taquara. Junto com a erva, surgiram a cuia e a bomba do chimarrão. Arraigando-se ao hábito da nova companhia, o cacique pôde finalmente confirmar seu sucessor como legítimo líder da tribo e, ao mesmo tempo, abençoar a união dele com sua filha. Agora, quando os dois jovens estivessem longe, o velho índio teria sempre ao seu lado o antídoto para espantar a tristeza.
Por ter sido a razão principal do surgimento da erva-mate, Caá-Yari passou a ser a padroeira e protetora dessas árvores. Desde então, a lenda foi sendo contada de geração em geração. Uma história que passou a rechear a prosa nas rodas de chimarrão.

Conquistando culturas
Ao que parece, o primeiro contato entre a Illex paraguariensis (erva-mate) com uma cultura estrangeira, ocorreu quando o General Irala derrubou o segundo adelantado de Assunção, colocando em prática um processo de ampliação de seus domínios sobre uma vasta região. Em 1554 seus soldados atingiram as terras de Guaíra (atual Estado do Paraná), encontrando 300.000 guaranis. Entre os hábitos do povo guarani havia o uso de uma bebida feita com folhas fragmentadas, tomadas em um pequeno porongo por meio de um canudo de taquara na base um trançado de fibras para impedir que as partículas das folhas fossem ingeridas. Os guaranis chamavam-na de caá-i (água de erva saborosa) e contatam aos soldados que seu uso fora transmitido por Tupã. Os soldados de Irala retornaram à Assunção com um bom carregamento de erva. As missões jesuíticas também prosperaram através da caá-mini. Em 1638 os bandeirantes invadiram as missões de Guaíra (ou Guairá), levando a erva-mate para São Vicente. O tropeiros que vinham de Minas Gerais comprar mulas nos Campos Gerais, voltavam com grandes carregamentos da erva-mate. Tal encontro entre estas culturas proporcionou o desenvolvimento do cultivo e do comércio da erva-mate.
Ao longo dos tempos, o chimarrão continuou a atrair o olhar de estrangeiros como Saint Hilaire, no século XIX, e Lévi-Strauss, no século XX. Sobreiveu ao tempo, ganhou status de “a bebida da hospitalidade” (através da roda de chimarrão) e se consolidou como um dos elementos que compõem a identidade do gaúcho, seja no campo ou na cidade.

Hoje
Dentro do contexto latino-americano, o Brasil ocupa – segundo dados do IBGE de 2000 – a quarta posição entre os países receptores de migração intra-regional. No Rio Grande do Sul residem aproximadamente 39mil estrangeiros, sendo que aproximadamente 24mil são oriundos de 18 países latino-americanos. Destacam-se o Uruguai (16mil), Argentina (4mil), Chile (773) e Paraguai (738). A maioria destes estrangeiros, portanto, são oriundos de regiões que possuem ligações históricas com a erva-mate. Mesmo havendo diferenciações regionais em relação ao preparo e o consumo da erva-mate, seja através do chimarrão ou do tererê – por exemplo -, não há um grande choque cultural quando estes estrangeiros se deparam com uma roda de chimarrão no Parque da Redenção, em uma tarde de domingo.
O impacto sobre a cultura não-latina
Mas e em relação aos estrangeiros não-latinos? A uns dois meses – acho – estava com um colega em um dos restaurantes universitários da UFRGS, quando um homem pediu para sentar-se à mesa. Sempre lotado, é comum dividir uma mesa com estranhos. Sua fisionomia sugeria uma descendência não ocidental. Pensei “indiano?” Muito curioso, puxei assunto. Era um estudante – paquistanês – de intercâmbio (mestrado) e tinha optado por Porto Alegre pelas facilidades de estudo, já que suas primeiras opções foram frustradas pelas questões financeiras.
As diferenças culturais eram grandes, mas nada causava a ele tanta indignação do que o fato de as pessoas se drogarem em plena luz do dia: fazem um círculo e se drogam, nas ruas, nos parques, em todo lugar. Realmente fiquei perplexo com a reação agressiva do estudante de intercâmbio sobre o assunto. De fato, as drogas são uma mancha em qualquer corpo social, mas me impressionava o tom de indignação dele. “Até na frente da polícia fazem isso, e a polícia não faz nada. Se é no meu país, isso não aconteceria!” De repente, alguma coisa começava a não fazer sentido na minha mente. O estudante terminou seu almoço. Nos despedimos e só depois de algum tempo – como em um circuito valvulado – me dei conta de que ele se referia ao chimarrão! Agora a indignação era a minha, por ter um símbolo da cultura do meu povo associado a uma prática condenável e, graças ao meu lento raciocínio, sem chances de esclarecer a situação.
Algumas semanas atrás, pesquisando para o Vivendo Porto Alegre, encontrei casualmente referências semelhantes a esse conflito entre culturas não-latinas envolvendo o ritual do chimarrão. Percebi que a experiência vivida no restaurante universitário não era uma questão isolada. Embora esta imagem negativa criada pela desinformação se limite a grupos migratórios específicos, imagino a repercussão negativa que este mal entendido poderá gerar quando Porto Alegre sediar a Copa de 2014.

Chimarrão não é uma droga ilícita.
Ao contrário do que pode pensar um visitante mal informado, o chimarrão não é uma droga ilícita e seu consumo não causa dependência. Na verdade, a folha da erva-mate possui propriedades benéficas e nutrientes ao organismo. Os indígenas já há muito conhecem as propriedades desta folha da família das Aquifoliácea. Em túmulos dos Incas no Peru foram encontradas folhas de erva-mate ao lado de alimentos e objetos. Os índios a utilizavam para combater a fadiga muscular, amasiar a fome e a sede, além de serem atraídos pelo seu paladar.
Atualmente, ínumeros estudos procuram avaliar o impacto do consumo da erva-mate. Sabe-se que a erva contém xantina. Ela possui propriedades diuréticas, relaxantes do músculo liso, estimulante cardíaco e vasodilatadores. A cafeína, também presente, é utilizada com estimulante do sistema nervoso central. Ambas são usadas para fins terapêuticos, mas o consumo excessivo destas substâncias não é recomendado.

Sabe-se que a infusão da erva-mate apresenta altas concentrações de K, Mg e Mn (por ser um micronutriente), intermediárias de S, Ca e P, baixa de Al e zero de Cd e Pb.

Aqueça com moderação.
Estudos sugerem que o uso excessivo de mate em temperaturas geralmente superiores a 60°C e em grandes volumes podem contribuir à carcinogênese esofágica em pessoas com pré-disposição para tal. Mas, ao que parece, a ciência ainda precisará de tempo para apresentar pesquisas conclusivas sobre o assunto. O que se sabe, de fato, é que o álcool e o fumo contribuem para o desenvolvimento desta doença.

Considerações finais.
O chimarrão é, antes de tudo, um ícone da amizade e da hospitalidade do gaúcho. Símbolo da própria identidade do gaúcho, presta um serviço de inclusão: não importa se tu és gaúcho ou se você é paulista, brasileiro ou estrangeiro. A roda de chimarrão é um convite à confraternização, serve de mesa para as conversas amenas ou para reflexões filosóficas, mas principalmente para o convívio harmonioso entre as pessoas.

2 Comentários:

Muito boa a foto do senhor com o Guaíba (imagino) ao fundo.

Senhor Jorge Luís, morador há 23 anos do Bairro Ipanema. Figura fantástica! Profundo conhecedor da Praia de Ipanema e da cultura gaúcha.